sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Bouncer

ERA 1986 e eu morava em Londres. 
A vida era dura, mas boa. Morava num “bedsit”, junto com meu namorado brasileiro, estudava inglês e trabalhava como diarista e baby sitter. Sim, diarista. 
Era uma excelente baby sitter e uma faxineira esforçada, mas sem jeito.
Os Packman

Entre os meus clientes havia um casal muito simpático – os Packman. Eles moravam numa bela casa em Hampstead, tinha um filhinho de dois anos – David – e um cachorro de dez, o Bouncer. 
Todas as terças-feiras eu pegava minha bike e chegava lá na hora em que Mrs. Packman e David estavam terminando seu café da manhã e Mr. Packman chegava de sua volta com Bouncer.
Na sequência, ele se preparava para sair. Beijava a mulher, o filho, acenava para mim e, invariavelmente, antes de fechar a porta, vira-se para o cão e dizia “bye bye, Bouncer, see you later!” ao que o animal respondia com um aceno de rabo e um latido.
Uma meia hora depois Mrs. Packman e David também saiam e eu ficava na casa às voltas com louça, roupas, vasos, pias, chãos e móveis pra cuidar. E com Bouncer.
O cão e o aspirador

Ele era um basset hound – aquela raça que arrasta orelhas pelo chão e –, pelo que poderia ser observado nos porta-retratos da sala, fazia parte da família desde antes do casamento, pois numa das fotos, ele está posando à frente dos noivos, com uma cartola e uma gravata-borboleta semelhante à de Mr. Packman.
Os “bouncers” são seguranças de casas noturnas. Mas Bouncer não me parecia um segurança muito respeitável.
Quando os Packman saiam, eu vestia as luvas de borracha, sintonizava o rádio na BBC e começava minha labuta. Bouncer me acompanhava silenciosamente, vigiando meus passos. Seu ponto fraco era o hoover – aquele aspirador de pó em pé, que aparecia em desenhos animados dos anos 70. Era só eu ligar o eletrodoméstico que ele se arrepiava e começava a latir. E não parava até que desligasse. Não me deixava em paz. Aliás, não deixava o hoover em paz. Conforme eu avançava e recuava, aspirando o pó do carpete, ele também avançava e recuava, como se duelasse. Acho que ele tinha medo que aspirasse suas orelhas que arrastavam pelo chão. Este era nosso único momento de tensão. De resto, nos dávamos muito bem.
Encanadores

Um dia, antes de sair, Mrs. Packman me avisou que havia contratado uma equipe de encanadores para resolver um problema de cano quebrado no jardim. E, de fato, uma hora depois de todos saírem, os encanadores chegaram.
Deixei-os no jardim e subi para passar roupa. Bouncer seguiu para o jardim com eles.
Um tempo depois, desci para aspirar o pó. Esperei Bouncer aparecer para começarmos nossa batalha. Liguei o aparelho, comecei o serviço, mas nada do cão aparecer. Estranhei. Fui até o jardim na parte de trás da casa, onde os homens trabalhavam. Não estava à vista. “Did you see the dog?” perguntei aos encanadores. Eles me olharam de volta, com cara de “que dog?”
Sumiço

Comecei a chama-lo. Fui pra sala e então notei que a porta da rua estava aberta. Provavelmente um dos encanadores tinha ido à van buscar alguma coisa e tinha esquecido de fechar. Gelei.
Comecei a gritar “Bouncer, Bouncer!” cada vez mais alto. Nada.
Saí pela rua gritando. Na minha cabeça já estava imaginando a cena. Como eu iria comunicar aos Packman o desaparecimento do ente querido. Cogitei pegar minha bicicleta e desaparecer. Nunca mais voltar. Eles não sabiam onde eu morava, na época não existia nem Facebook, nem celular... Não seria fácil eles me encontrarem. 
Continuei descendo a rua e gritando. Não. Não fugiria. Eu poderia culpar os encanadores. Até porque eles eram mesmo culpados. Ainda assim, teria que dar a notícia. Não ia ser fácil.
Quatro quarteirões adiante, quando já estava me conformando com minha sina, avistei Bouncer num jardim, cercado de flores e tentado montar num(a) galgo. Toquei a campainha da casa e, muito sem jeito, expliquei à senhora que atendeu o que estava acontecendo. Ela apressou-se em espantar o intruso dali, antes que houvesse chance de ocorrer uma mistura de raças. 
Peguei o bicho no colo – ele era bem pesado – e fui levando de volta à casa.
Certifiquei-me de que a porta estava bem fechada e fui buscar o hoover para duelarmos. 
Aguardei os encanadores irem embora para poder trancar a porta, deixar a chave no lugar combinado e ir embora.
Silêncio



Nunca contei aos Packman o ocorrido.
Trabalhei mais alguns meses ali. Voltei pro Brasil. 
Mas, até hoje, ainda lembro de Mr. Packman – “By bye Bouncer, see you later!”