terça-feira, 5 de maio de 2015

Nariz

Chamou as duas filhas, sentou-as à sua frente. Mais séria do que de costume, procurava as palavras.
- A Catarina, minha chefe, vem jantar aqui hoje.
As meninas esperam que a mãe prossiga.
- É muito importante que vocês se comportem.
Elas se entreolham. Que conversa era aquela?
- É que... é que ela tem uma coisa que...
A mais velha rompe o silêncio:
- Ela é “portadora de deficiência”?
- Não! –responde categórica.
Dá um suspiro. Desabafa:
- Ela tem um nariz enorme. Gigantesco.
A dupla cai na gargalhada. A menor:
- Que nem o do Pinóquio?
Ela relaxa.
- Na verdade parece um tubarão!
Gargalhadas de novo.
Fica séria.
- Mas vocês não podem falar isso pra ela. Não podem nem falar sobre o nariz dela uma com a outra quando ela estiver aqui.  Não podem ficar olhando pro nariz. Entenderam?
- Mas e se a gente rir?
- Eu mato vocês!
Sabem que é brincadeira. Mas ela baixa a voz e sussurra:
- Não façam isso. Eu preciso muito deste trabalho. Vocês sabem. Mas ela cismou de vir aqui. Quer conhecer vocês. Ela chegou do sul faz pouco tempo... sei lá. É importante pra mim que tudo saia bem.  Vocês têm que fazer de conta que aquele nariz é a coisa mais normal do mundo. Nem dar bola pra ele. Posso contar com vocês?
As duas, lisonjeadas com tanta responsabilidade, balançam afirmativamente.

***
A cozinheira também é avisada. Além de preparar sua especialidade, não deve ficar encarando o nariz da chefe.
As meninas já estão de banho tomado, penteadas, vestidas com as melhores roupas.
A mãe anda de um lado pro outro, experimentando as panelas e trocando os arranjos de flores de lugar.
A campainha toca.
O nariz chega.
É fenomenal.
Mas as meninas ficam impávidas. Seguem à risca as orientações da mãe.
A mãe não tira as meninas do radar.
Quando a convidada leva o copo à boca, há um instante de tensão. A boca do copo é estreita. Será que ela vai conseguir? Será que as meninas vão aguentar ficar quietas?
O nariz quase entala, mas, sua dona, já acostumada com tais situações, sabe qual o ângulo de aproximação exato para evitar incidentes.
Chega a sobremesa. As meninas estão cansadas. Pedem licença para ir dormir.
A dona do nariz comenta como as meninas são educadas. A mãe, discretamente, respira aliviada.
Vai até a cozinha. Seus passos estão leves.
Volta com a bandeja de café. Coloca sobre a mesa e pergunta, sorridente:

- Aceita um narizinho?

Quem procura... acha? Ou o Y e a perna faltante

Será que o Y é manco, como diz minha amiga Thelma? Que costela de Adão que nada. No processo de criação, Deus se distraiu e, num acidente cortou aquela perninha.  Mas é justo nela que deve estar a porção de DNA correspondente à capacidade de procurar as coisas. Ou vai ver que o Y é míope de nascença. Não que não saiba procurar, simplesmente não enxerga.
Exemplo?
1.
XY:  Cadê a tesoura grande?
XX: Está na segunda gaveta da cozinha.
(Barulho de gaveta sendo aberta).
XY: Em que lugar? (estamos falando de UMA GAVETA, não de um armário)
XX: Do lado esquerdo.
XY: Não tá aqui! (Note bem: a frase é "Não está aqui" e não "Não estou encontrando")
E lá vai XX. Abre a gaveta, tira um guardanapo de cima, e lá esta ela, a tesoura. E não é pequena.
XY: Ah, mas você não falou que tinha um guardanapo em cima.
2.
XX: Me faz um favor? Já que vai subir, pega os meus óculos que estão em cima da cama?
XY: Claro!  (os XY são, geralmente, muito atenciosos)
Dez segundos depois...
XY: XXiiiisssss! Não está aqui! (Note bem: a frase é "Não está aqui" e não "Não estou encontrando")
XX sobe as escadas vai até o quarto. Em cima da cama, há um objeto preto, uma caixinha. De óculos. XX pega e olha para XY. XY responde ao olhar, indignado: ah mas você não disse que estava no estojo.

3.
Sábado eu estava com dor no meu ombro operado, deitada no sofá da sala, assistindo a um filme. Roi (meu marido e notório XY) perguntou se eu queria um remédio.
Eu: Sim, por favor! Traga a cartela de comprimidos que está no meu criado-mudo. Tem duas pilhas de livros, está em cima da pilha da esquerda. Não está nas gavetas. (Eu sabia que se estivesse nas  gavetas, o manquinho não iria encontrar nunca).
Quinze segundos depois....
XY: Claaau, não tá aqui! (Note bem, mais uma vez: a fase é "Não está aqui" e não "Não estou encontrando").
Visto a tipóia e subo. Adivinha? Está lá. Na pilha da direita? Não. Dentro da gaveta? Não. Caída, atrás do criado-mudo? Não!!! Na pilha da esquerda? Sim!!! Mas então, está embaixo da pilha? Não!! Entre os livros? Nãããão! Está em cima da pilha, com um pequeno sachê cobrindo metade da cartela.
XY: Ah, mas estava escondido!

***
Além disso, suponho também que esteja na tal perninha faltante a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo e, certamente, uma porção da memória de curto prazo.

No domingo, nosso filho Martim tinha um jogo de futsal importantíssimo. Ele é goleiro e costuma fazer a diferença. A partida é no fim do mundo, dobrando a esquina.
Vamos todos assistir.
O técnico, ao ver o Martim, respira aliviado. Então faz a pergunta fatal: trouxe o RG?
Martim olha, aflito, pra mim. Eu olho com poucas esperanças para XY, digo, Roi. Ele não tem pra quem olhar. Não trouxe. Não leu o email até o fim, onde estava escrito "Levar o RG". Ele tenta se justificar, mas não há tempo a perder.
XY, digo, Roi: Vou lá buscar.
Eu: Ok. Seja rápido.
Roi: Onde está o RG?
Eu: Dentro da primeira gaveta do meu escritório, ao lado do computador.
Antes que ele pergunte "onde", sugiro: "Porque você não traz a gaveta? Assim não tem perigo de não encontrar!"
E estava falando sério.
Ele sai apressado.
A partida que antecedia o jogo de Martim, termina. Nada de ele chegar.
Os meninos aquecem, o técnico tenta negociar com a arbitragem. Nada feito.
Meu celular toca. É XY.
"Clau, a chave de casa está com você?"

Jalapaixão - 2ª parte


A noite cai. Não. Ali, a noite despenca. Do céu colorido à escuridão total, passam-se poucos minutos. Minutos nos quais a metamorfose das cores e luzes parece o trabalho de um artista temperamental, que, indeciso, não sabe que tons usar. Uma leve brisa sopra e o calor se esvai, deixando uma temperatura amena e agradável.

Durante o jantar, servido mais uma vez embaixo da mangueira, a turma começa a relaxar. Banho frio, cerveja gelada, petiscos saudáveis e saborosos, fazem a conversa fluir.  Os meninos já brincam juntos. Os adultos, pouco a pouco, vão se apresentado. As caras vão ganhando nomes, lugar de origem e ocupação. Os guias, bem humorados, também colaboram pra que o ajuntamento de pessoas passe a formar um grupo: conversam, fazem brincadeiras, contam causos.

Hora de dormir.  A cama de sleeping, com colchão inflável, é surpreendentemente confortável. Meus vizinhos roncam. Uma gata no cio atormenta outros gatos. Galos, boêmios, resolvem cantar. Mesmo assim, levanto antes do sol e não me sinto cansada. Quando começa a clarear, saio para uma corrida.

Encontro Julio,  voltando de uma caminhada na escuridão. Carlão, também acordado, está a postos com sua supercâmera sobre um tripé, para flagrar o nascer do sol.  

A estrada é basicamente plana, de terra basicamente dura. O combinado é que eu não saia da fazenda. André, um dos guias, me pediu que não saísse por medidas de segurança.  Vai que encontro uma onça encerrando o expediente... Meu sprint não é tão bom assim.

Desencano do Ipod e corro ao som do Jalapão. As aves saúdam o sol que desponta. E imediatamente manda o friozinho pra longe.

Rio do Sono
A próxima atração, é o Rio do Sono. Nosso primeiro encontro com as águas jalapenses. Cristalina, fria, mas não gelada, com uma correnteza que não deixa nem o mais intrépido dos nadadores do grupo vencerem-na. E olha que tentamos. Apostei uma cerveja com o Décio que chegaria até a ponte,  mas não fui capaz.

Os meninos fazem castelos de areia. A areia é fina, como as mais finas areias das praias costeiras. 
Deixamos o Rio do Sono acordados, revigorados e prontos para mais kms de terra sob o sol.

No meio do caminho, tem uma Catedral, e em frente a ela, o grupo fez a primeira foto coletiva. 

Na porta da igreja, ops, Serra da Catedral

Feitas as juras, seguimos para São Félix do Jalapão. 

Calor escaldante, mas o almoço foi numa choupana bem sombreada,  coberta por folhas de piaçava. Não a vassoura, mas uma palmeirinha anã que nasce feliz no cerrado.

Depois da refeição, fomos em busca de sorvete. Impossível saber as opções de sabor:

Eu (apontando para a geladeira onde um sem número de picolés de embalagens diferentes se espremem, um colado ao outro): 
- De palito, tem de que?
A dona da sorveteria: 
- Picolé...
Aponto então para os potes de massa:
- E de massa...?
A dona da sorveteria:
- É sorvete...

Desisto de escolher. Pego o primeiro que aparece. 

O ponto alto do dia é a Cachoeira da Formiga. Ali, em suas águas turquesas, os que ainda resistiam aos encantos do Jalapão, acabam por se entregar.



Deixamos a água bater forte nas costas, submergimos abaixo da correnteza, competimos para ver quem consegue ir e vir por baixo d'água, deixamo-nos arrastar pelas águas. 
O Jalapão nos envolve, nos refresca, nos diverte. 


Jalapaixão - 1ª parte


Há momentos que você sabe que está vivendo algo especial. Sabe que não irá esquecer. Que vai ter saudades e vontade de rebobinar a fita pra revivê-lo. Alguns são extremamente rápidos e delimitados:  o nascimento de um filho, por exemplo. O instante em que, pela primeira vez, você olha dentro dos olhos daquele serzinho que já virou sua vida de ponta-cabeça. Ou o término de uma prova de Iron: o tapete azul, a visão do pórtico de chegada, o fim. Outras ocasiões, podem não ser tão bem delimitadas, mas também trazem uma carga de emoções profundas. O início de uma paixão ou, como foi nosso caso recentemente, uma viagem.
Estou ainda sob o impacto da experiência. Portanto, este não será um post imparcial, isento, objetivo. Pelo contrário, espero relatar a viagem com cores de paixão - as mesmas, por sinal, que tingem o céu do Jalapão ao entardecer.

Não é amor a primeira vista, já que ele não facilita as coisas para o visitante. Não se entrega, não se exibe, nem busca seduzir. É seco, bruto, agreste. O desavisado, ao aproximar-se, pode ficar com a primeira impressão e desistir de seguir em frente. Melhor assim. Não é para os fracos, nem para os frescos. 

Lá fomos nós cinco: Ian, Félix e Martim - meus filhos, Roger - meu marido, e eu, numa expedição, com mais quinze aventureiros, seis guias e alguns acompanhantes, que lá estavam por razões diversas. Um grupo heterogêneo, vindo de diferentes partes do Brasil.

Os guias - Sergio, André, Paulinho, Galera, Kiko e Samir, não apenas cuidavam de nossa segurança, transporte, alimentação e acampamento mas, sobretudo, nos iniciaram nos segredos do Jalapão. Como aquele amante experiente, que conhece as curvas e os caprichos da mulher amada, foram nos levando para dentro do Jalapão. Ao mesmo tempo em que  o Jalapão entrava dentro de nós.

O Mamute
O primeiro dia, é de muito chão. Instalados no Mamute - um caminhão de bombeiro alemão adaptado para esta nova função-, sacudimos no estradão de areia vermelha por várias horas, atravessando uma paisagem estranha aos nossos olhos. Horizontes sem fim, interrompidos pelas chamadas "serras": formações altas, que se destacam do chão, cujo topo é totalmente plano. Vemos uma revoada. Parecem beija-flores, mas são gafanhotos. De vez em quando, uma concentração maior de verdes, indica a presença de água: são as veredas, os oásis do cerrado.


Nossas ocas, à sombra da mangueira
Chegamos então ao local de nosso primeiro pouso. Uma fazenda. O acampamento é montado enquanto o almoço é servido. Tanto um, quanto outro, ficam à sombra de uma enorme mangueira. André e Kiko ensinam ao grupo como montar e desmontar as barracas. Logo em seguida à  aula expositiva: aplicação prática. Meninos e homens trabalham na construção de seu lar provisório. Com a ajuda dos guias, que logo apareciam ao lado dos que estavam com dificuldades, a pequena vila foi instalada.

Ao cair da tarde, rumamos para o primeiro atrativo oficial da viagem: Serra do Gorgulho. Para o deleite de meninos (e de meninos crescidos também), fomos autorizados a subir nas costas do Mamute. O trajeto, curto, foi feito de forma lenta e segura, para não haver riscos e para que curtíssemos a paisagem.

O Gorgulho é uma formação de arenito, que irrompe do chão, vermelha e erodida.  Dali do alto, com 360 graus de horizontes, vimos o sol descer e o céu ficar da cor da terra. Ali, o Jalapão segurou a minha mão, com doçura, mas com firmeza. E seu toque me agradou.


(A expedição Jalapão foi organizada pela Venturas e Aventuras)

Rápida aventura

Este texto, escrevi sob encomenda há anos para uma publicação que nunca aconteceu. Como vocês perceberão, o narrador/protagonista não sou eu - é uma mistura de meus dois filhos mais velhos - Theo e Martim. Espero que gostem!

— Mãe, quero fazer uma corrida com você. Posso?
Fazia tempo que eu via minha mãe chegar suada e sorridente, com uma medalha pendurada no pescoço. Eram as tais provas. No começo, eu não entendia. Como assim, “prova”? Adulto também faz prova? E ainda por cima chega todo contente?
Logo saquei que eram competições de corrida o que ela chamava de provas. Fiquei impressionado porque sempre, sempre ela chegava com medalha. Ela devia ser super rápida. Ganhava todas! 
 —Todo mundo que termina a corrida, leva uma medalha, explicou.
 “Que coisa mais sem graça”, pensei. “Se todo mundo ganha, ninguém ganha, então não tem vencedores de verdade.”
Pelo menos um domingo por mês ela saía bem cedinho de casa, de shorts, boné e camiseta e um número escrito num papel que ia preso por cima da roupa. Voltava perto da hora do almoço. 
Aquilo começou a me intrigar. Devia ter alguma graça. Foi então que pedi pra ir com ela a uma corrida.

O treinamento
Antes de responder, ela coçou a cabeça e torceu a boca (ela sempre faz isso quando está em dúvida):
— Você quer correr? Tem certeza?
Balancei a cabeça com a maior firmeza.  Já tenho dez anos. Quando tenho certeza, tenho certeza mesmo.
— Bom... Primeiro, vou procurar uma corrida mais curta, de uns cinco ou seis quilômetros. Aí, você vai ter de treinar um pouco.
“Cinco ou seis quilômetros é curta?! Treinar?” pensei, mas não deixei que ela percebesse meu susto. Eu imaginava que as corridas que ela fazia eram aquelas rapidinhas, tipo 100, 200 metros. E treinar? Para quê treinar? Correr é tão fácil! É só pegar e... Sair correndo! Não aguentei e disse:
— Mãe, eu já sei correr. Você acha que eu preciso mesmo treinar?
Ela deu uma risadinha.
— Miguel, você vai precisar acostumar seu corpo a passar um tempo correndo sem parar. Não é igual a dar uma corridinha quando você está jogando bola. O que você acha que eu faço todos os dias cedinho, antes de vocês acordarem?
Era isso que ela chamava de treino. Nunca tinha me ligado.
Começamos o nosso no fim de semana. Viajamos para o interior e lá, como é mais tranquilo, saímos juntos por uma estradinha de terra.
Larguei em disparada. Ela não acelerou. Veio vindo atrás de mim sem se importar em ser deixada pra trás. Eu olhava por cima do ombro e continuava rápido. Aos poucos, minhas pernas começaram a cansar. Não demorou para que ela me alcançasse. Minha respiração estava ofegante, meu coração parecia que ia sair pela boca, estava todo suado e não tinha mais força pra ir a lugar algum.
— Então...já... deu... cinco... qui...lômetros...? perguntei, ainda tentando recuperar o fôlego.
— Negativo. Não deu nem um quilômetro. Você vai ter de aprender a ir mais devagar.
— Um quilômetro? Nem UM quilômetro? Ir mais devagar? Como eu vou ganhar se for mais devagar?
Ela riu.
— Miguel, é isso mesmo. Mais devagar e você vai conseguir correr muito mais tempo.
Depois daquilo fizemos alguns outros treinos. Sempre que me lembrava, corria em volta de casa. Mas não sabia que distância conseguia percorrer, se havia chegado perto dos 5 quilômetros ou quanto tempo tinha levado.
Então minha mãe me comunicou que havia feito minha inscrição na corrida. Seriam cinco quilômetros, na Cidade Universitária de São Paulo, a USP.

O dia da corrida
 Minha mãe me tirou da cama antes de o sol nascer. Eu estava com muito sono. Tinha custado a dormir porque uma dúvida não saía da minha cabeça: “Será que vou conseguir terminar?”
Vesti shorts, camiseta e um tênis de corrida que minha mãe me deu. Então ela tirou de uma sacola com o nome da corrida, o tal do número de papel e um pequeno objeto plástico e explicou:
— Este é o seu número de peito: 2044 e este, seu chip de cronometragem. Vou colocar em você.
Então ela prendeu com alfinetes o número na frente da minha camiseta e colocou o chip no cadarço do meu tênis. Enquanto ela fazia isso, perguntei:
— Para que serve isso, mãe?
— O chip marca o seu tempo. Quando a gente larga, passa por um tapete onde fica um sensor que lê a informação do seu chip e sabe que você é o número 2044 e se chama Miguel Navarro. No final, tem outra esteira que marca sua chegada. Depois sua classificação aparece no site da corrida. O número de peito é pra os organizadores saberem que você está competindo e te darem água, Gatorade e também para os fotógrafos tirarem fotos suas.
— Classificação? Mas você não disse que todo mundo ganha medalha? Para que serve a classificação?
— Serve pra você saber como foi seu tempo em relação aos outros.
— Ah, então tem 1º, 2º e 3º colocados?
— Tem, sim. Tem até do último que chega!
“Puxa...”, pensei “Será que o último não fica triste em ser o último de CINCO MIL pessoas?”
Tomamos um café da manhã especial. Deixamos meu pai e meus irmãos dormindo e lá fomos nós.
Quanto mais perto chegávamos da USP, mais gente eu via vestida igual a mim e à minha mãe. Eram sete horas da manhã de um domingo e, aquelas pessoas, em vez de ficarem sossegadas dormindo nas suas caminhas quentinhas e confortáveis, andavam apressadas, mas sorridentes. Uma multidão uniformizada. Todos de um mesmo time.

A largada
 Minha mãe conhecia um monte de gente. Me apresentava a todos:
- Este é Miguel, meu filho do meio. Ele vai correr comigo!
As pessoas arregalavam os olhos, me cumprimentavam e desejavam “boa sorte”.  E eu só pensava “vou precisar mesmo!”. 
Quanto mais próximos chegávamos da largada, mais gente tinha e mais borboletas pareciam voar dentro do meu estômago.
Num determinado ponto, minha mãe parou e disse:
— Vamos ficar por aqui se não, na hora que largar, vamos ser atropelados. Ah, espera aí que tenho uma coisa muito importante para você.
Então ela pegou uma espécie de cinto e colocou em volta do meu peito, debaixo da camiseta. Depois tirou o relógio de seu pulso e colocou no meu.
— Isso é um monitor cardíaco e GPS. Além de cronometrar seu tempo e marcar sua velocidade, mostra quantas vezes por minuto o seu coração está batendo.  Assim posso ver se você não está exagerando.
Adorei colocar aquele relógio. Ficou um pouco grande, é verdade. Mas era muito legal ver como meu coração batia e, mais ainda, eu iria poder ver a minha velocidade!
— Agora vamos combinar a estratégia para a prova.
— Estratégia? Não é só correr do começo ao fim?
— Sim, a gente vai correr do começo ao fim. Mas vamos tentar fazer o seguinte: no primeiro quilometro a gente vai bem leve, no segundo, a gente acelera um pouquinho, no terceiro a gente acelera um pouco mais e daí mantém até chegar no último. No último, se você estiver bem, aí pode socar a bota!
— Socar a bota?
— Ir o mais rápido que der, como naquele seu primeiro treino.
Tinha uma coisa que estava me incomodando. Eu precisava perguntar.
— Mãe... e seu eu não... e se eu não aguentar chegar até o fim?  Você vai ficar muito decepcionada comigo?
Ela me olhou muito séria:
— Filho, não tem o menor problema se você não conseguir. Mas tenho certeza de que você vai cruzar a linha de chegada. Se você se cansar, a gente anda um pouco.
— Mas pode andar?
— Pode, pode sim. Fica tranqüilo. Não só você vai terminar, como vai chegar antes de um monte de gente.
Fiquei um pouco mais sossegado. Eu não queria andar. Muito menos ser o último!
Ela pegou a minha mão e apertou forte. Olhou-me e disse:
— Boa prova, filho!
— Boa prova, mãe! — respondi.
Soou a largada. Um som de berrante. As pessoas festejaram gritando e batendo palmas e saíram caminhando sem muita pressa.

Quilômetro 1
Ao passarmos pelo pórtico da largada, minha mãe disparou o cronômetro do relógio de pulso. Ali, todos começavam a correr.
Mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos ir muito rápido. Era um mar de gente.
Alguns mais apressados tentavam costurar entre as pessoas, como motoristas nervosos numa estrada cheia. Mas pelo menos pediam licença.
Nós íamos num trotinho que não me cansava.
Depois de sete minutos avistei uma placa onde se lia: 1 km. Já tínhamos traçado o primeiro quilômetro!

Quilômetro 2
Com um “give me five” comemoramos a passagem pela placa. Minha mãe conferiu como estava meu coração e, como tínhamos combinado, aceleramos um pouquinho.
Achei que iria ficar sem fôlego, mas, depois de alguns metros, minha respiração se acostumou com aquele ritmo.
 Nesse momento as borboletas voaram embora do meu estômago. Comecei a olhar em volta e ver que tinha todo o tipo de gente correndo: homens, mulheres, magrelos, gorduchos, altos, baixos, velhos, moços (mas eu era o caçula ali, com certeza), rápidos, lentos.  Alguns conversavam com corredores ao lado, outros iam solitários ouvindo música e, uns poucos, em vez de correr, caminhavam rápido. Mas não tinha um que não estivesse levando a sério aquela corrida.
Olhei para o meu relógio. Estávamos a 9,7 km por hora quando passamos pela placa de 2 km.

Quilômetro 3
Neste quilômetro me animei e comecei a acelerar muito. Minha mãe disse:
— Calma aí! Vamos mais rápido, mas nem tanto. Olha, tenho uma idéia. Está vendo aquele cara ali na frente de boné azul? Vamos ultrapassá-lo! Mas sem correria!
Então miramos no boné azul e lá fomos nós. Conseguimos passar. Minha mãe propôs novamente:
— Agora aquela moça de rabo de cavalo e shorts preto. Vamos?
Depois foi minha vez de sugerir um casal que estava de camiseta igual.
E assim fomos, ganhando de um monte de gente. As pessoas nem percebiam o que a gente estava fazendo, mas, para mim, cada uma dessas ultrapassagens era uma pequena vitória.
No meio deste quilômetro havia um posto de hidratação.
Quando peguei a água de uma das moças que estendia o copinho pros corredores que passavam, ela olhou pra mim e disse para os outros:
— Olha só, gente! Um garoto!
— Aêêê! Parabéns! Vai lá, rapaz, você está muito bem!
E todos bateram palmas enquanto eu tentava manter a corrida e beber água ao mesmo tempo – o que não era muito fácil.
Chegamos à placa de 3km. Comemoramos de novo com um “give me five”. Minha mãe disse:
— Já foi mais da metade. Agora falta pouco!
O relógio marcava 10,1 km por hora.

Quilômetro 4
Nesta parte do percurso os corredores estavam bem mais espalhados e havia espaço para correr. Mas também apareceu uma coisa que não estava no programa: uma subida.
Minha mãe deu as instruções:
— É uma subida pequena, mas é uma subida. Vamos diminuir um pouco o ritmo e vamos dividir em pequenos pedaços.
— Como assim?
— Está vendo aquele poste? Pense que a subida é só até ali.
Quando chegamos ao poste, que era bem pertinho, ela disse:
— Muito bom! Agora, aquela caçamba de lixo!
E lá fomos nós. Cada trechinho tinha uns dez metros e comemorávamos cada chegada.
Quando chegamos ao topo, ela disse:
— Agora pode soltar o freio, que é só descida!
Que delícia! Aceleramos e chegamos até mais um posto de hidratação.  Peguei um copinho, tomei um gole, sem parar de correr e, imitando minha mãe, joguei um pouquinho na cabeça pra refrescar.
Aumentei minha velocidade. O relógio marcava 10,6 quilômetros por hora.
— Ainda falta um quilômetro e meio - disse minha mãe, - você está bem mesmo? Então vamos assim, neste ritmo mais forte.
Começamos a ultrapassar várias pessoas. Muitas exclamavam:
— Olha só esse garoto! Ta mandando bem, hein?  Parabéns!
Comecei a me sentir cada vez melhor, embora já tivesse corrido quase quatro quilômetros. Nem parecia. “Queria que meu pai e meus irmãos vissem isso...” pensei “Eles se orgulhariam de mim!” Na hora em que pensava isso, vi a placa do km 4.

O último quilômetro
Era hora do tudo ou nada.  O olhar da minha mãe me disse: “Vamos nessa!”
E fomos com tudo.
Minhas pernas me levavam.  Meus braços abriam o espaço que estava à nossa frente, meu coração pulsava rápido, minha respiração martelava junto com a batida dos meus pés no chão, minha cabeça estava vazia. Eu não via, mas percebia a presença de minha mãe ali ao lado.
Então avistei o pórtico de chegada.

A chegada
Um pouco antes de cruzarmos a linha de chegada a pista se estreitava, formando uma espécie de funil. Ali, ficava a torcida, aplaudindo todos que chegavam.
Quando entramos neste funil as pessoas aplaudiram muito, assobiaram, gritaram. Tive até a impressão de ouvir meu nome, mas eu não conseguia olhar para os lados — estava totalmente concentrado em chegar ao fim. Minha mãe segurou minha mão para passarmos o pórtico.
Uma alegria imensa tomou conta do meu corpo. E me senti forte como nunca tinha me sentido na vida.
Atravessamos a linha de chegada juntos. Então me soltei de minha mãe e ainda tive forças pra saltar e dar um soco no ar gritando “Yessssss!”
Minha mãe me abraçou forte. Seus olhos estavam molhados.  Voltei a enxergar e ouvir o que estava à nossa volta.
— Mamãe! Miguel! Mamãe! Miguel! Aqui! Aqui!
Meu pai e meus três irmãos estavam lá e faziam a maior gritaria. Corremos até eles e fizemos a maior festa.  Mas eles estavam de um lado da grade, e nós, do outro.
Para sair dali era preciso devolver o chip e...  Pegar a medalha!
Tirei o chip e ganhei a medalha mais linda do mundo.
Ganhamos também uma camiseta de “finisher” (só pra quem termina a prova) e um lanchinho.

O último colocado
Saímos da confusão e encontramos a família. Como o dia estava bonito e meu pai achava que se saíssemos àquela hora pegaríamos muito trânsito, ficamos por ali mesmo, conversando. Eu queria contar tudo para os meus irmãos!
O tempo foi passando, o número de pessoas diminuindo e os corredores iam chegando aos poucos. Até uma hora que parecia não haver mais ninguém. Os organizadores começavam a se movimentar para desmontar as grades, tirar os tapetes... Mas havia uma família ali. Uma mulher mais velha, dois casais de adultos e algumas crianças que brincavam por perto.
A senhora mais idosa parecia tentar enxergar ao longe, as outras, mais moças, roíam as unhas e torciam as mãos. Mas aí ele apareceu. O último colocado. Ele vinha correndo num ritmo arrastado, quase parando. Então ele viu sua família. Seu peito se encheu de ar, seu passo ganhou firmeza, ele acelerou e veio com suas últimas forças. A família gritava “Vai vovô! Vai papai!”. Então pularam a grade e encontraram com seu campeão bem na linha de chegada.


“Ele chegou em último lugar, eu não cheguei em primeiro” pensei, “mas acho que nós dois somos campeões!”. E foi aí que entendi o valor daquelas medalhas.

Garanta Vermelha - minha nórdica paixão

Encontrei o norueguês Jo Nesbø porque procurava. Navegava pela internet em busca de um novo romance. De preferência, nórdico. Policial.  Depois de ler a trilogia Millenium (Stieg Larsson) e o Homem de Beijing (Henning Mankell) não queria outra coisa.
A combinação de uma trama bem montada com personagens densos na paisagem gelada da Escandinávia me enfeitiçou. E, assim, por acaso,  topei com Garganta Vermelha
Bastou ler três páginas para não conseguir mais fazer outra coisa da vida. Sorte minha, que estava de licença médica em casa. Azar meu. Mal sabia o grau de dependência que iria me acometer.
Garganta Vermelha não é um livro para iniciantes.  A história se desenrola em duas épocas diferentes:  atual e durante a 2ª Guerra. Além disso, o ângulo da narrativa transita entre alguns personagens. É como se o leitor estivesse olhando por um caleidoscópio. Aos poucos, entretanto, as imagens vão se conectando e o sentido aparecendo. Em alguns momentos, até o mais experiente dos leitores vai duvidar de seu entendimento e ter de voltar algumas páginas pra checar se não está se confundindo.
A tensão e o suspense, típicos dos filmes e romances policiais, são crescentes do começo ao fim mas também aparecem em cenas, ops, capítulos, ao longo do livro.
O que realmente me ganhou foi o herói. Ou o anti-herói. Harry Hole é um policial atormentado por seus fantasmas. Como muito dos detetives americanos da década de 50,  é um renegado. Antissocial, alcoólatra, fumante, encrenqueiro, insubordinado, impulsivo, obsessivo-compulsivo. Mas, como eles também, é brilhante, irônico e enxerga além das aparências. E tem mais. É leal, passional, corajoso e tem um tremendo senso de justiça. Magro, alto (1,92 pra ser exata), olhos azuis, cabelos raspados e, a cada aventura, ganha novas cicatrizes tenebrosas, que não conseguem enfeiá-lo. É um pouco atrapalhado com as mulheres. Ainda assim, não deixa de conquistar corações entre um assassinato e outro.
Além disso, nem sempre os piores vilões são os assassinos. Isso cria, na história, enredos paralelos - que às vezes levam dois, três até quatro volumes para o desenlace!
Os coadjuvantes, que aparecem mais em alguns livros do que os outros, também tornam-se nossos velhos amigos. Como Harry, são também um pouco desajustados: nerds, bipolares, alcoolatras...humanos.

Foto de Cato Lein - site oficial Jo Nesbo
O autor tem uma trajetória curiosa. Filho de bibliotecária e professor, gostava de ler, mas era péssimo aluno. Sonhava em jogar no Totenham, então começou pelo Molde FC e só parou porque teve problemas no joelho.
Recuperou o tempo perdido, cursou economia e foi trabalhar no mercado financeiro. De dia. À noite cantava numa banda pop - Di Derre. Gravaram discos, fizeram turnês e alcançaram um relativo sucesso. Nesbo era o letrista.
A vida dupla era muito puxada. E ele também sentia que seu perfil não era adequado para orientar investidores. Sincero demais. Cansou. Largou a banda, o emprego e foi fazer um sabático na Austrália. Uma amiga, editora, sugeriu que ele escrevesse um livro sobre a sua experiência na banda. Mas ele voltou com Harry Hole.
Depois de Garganta Vermelha, persegui Jo Nesbo incansavelmente. No Brasil, ele tem publicado pela Record, A Casa da DorA Estrela do Diabo  e O Redentor. Na FNAC encontrei e/ou encomendei, em inglês, The SnowmanThe Leopard, Phantom, The Bat  e, o único que não é com Harry Hole, Headhunters.
The Bat é o primeiro mas foi publicado em inglês somente depois que ele se consagrou como escritor. Não é sofisticado como o terceiro (Garganta Vermelha), mas vale a leitura, principalmente porque é onde nasce o personagem. E dá pra perceber a evolução de Nesbo como autor.  O segundo, The Cockroaches, é o único que ainda não consegui comprar. 
Em 13 de outubro passado ele lançou Police. No dia seguinte, encomendei pela Amazon. Demorou um mês pra chegar, mas valeu a pena. Tentei economizar. Ler poucas páginas ao dia. Impossível. O livro ficou grudado em minhas mãos e, enquanto não terminei, minhas horas de sono ficaram ainda mais reduzidas. 
Que me desculpem os que consideram a literatura policial um gênero menor. Discordo frontalmente. E usarei todas as armas que forem necessárias pra defender meu ponto de vista: de uma Glock 9mm a uma Leopold's Apple (vide The Leopard). 
Um bom romance policial tem tudo de melhor que há na literatura - trama interessante - com o plus das reviravoltas -, personagens redondos, pitadas de humor e, muitas vezes, um discurso bem construído.
Então, em vez de finalizar meus estudos pra prova de Estratégia de Empresa, eis-me aqui redigindo uma ode de amor ao Jo Nesbo e ao Harry Hole. Como eles, também não sou uma personagem linear ou plana. Deve ser por isso.  E, bom... nem preciso finalizar dizendo o quanto recomendo a leitura.
Minha nórdica paixão e eu.

Visto

Estava na "fila da segurança" para entrar no consulado americano. Era a terceira das seis filas necessárias para passar pela entrevista. Antes mesmo de entrar no prédio, você é abordado de forma educada, mas não simpática, e é convocado a mostrar seus pertences. Melhor dizendo, a comprovar que entre os seus pertences não há nenhum aparelho eletrônico ou bomba. Quase fui reprovada na revista. O moço perguntou se eu trazia comigo celular, tablet ou carregador de bateria. Neguei veementemente. Então ele sacou de dentro da minha bolsa um pen drive:
- O que é isso?!
- Um pen drive... - respondi baixinho, imaginando de onde poderiam surgir os homens de preto que me levariam dali.
Mas ele apenas grunhiu "humpf", devolveu o dispositivo para dentro da bolsa e me mandou seguir para a segunda fila. Não era ainda a fila da segurança. Era a fila amarela.
Então, na terceira fila, a da segurança, apareceu um moço que realmente devia ser AQUELE.
- Eu já falei, eu já avisei... Tem que chegar aqui na porta SEM o cinto! Vocês deixam pra tirar o cinto quando chegam aqui! Atrapalham tudo! A fila não anda, por causa de vocês que deixam pra tirar o cinto aqui na frente, mas vocês não escutam, vocês não escutam! Eu JÁ falei - NÃO ENTRA DE CINTO! Por que vocês não tiram o cinto antes? Estão aí sem fazer nada! E olha, aparelho eletrônico NÃO ENTRA! Querem chegar até aqui e depois voltar pro começo da fila? Azar de vocês! Porque não vai entrar. NÃO vai. Já tiraram o cinto? Já tiraram? Vocês não me ouvem, não prestam atenção! Eu já avisei laaaaa atrás. Tem que tirar o cinto. NÃO ENTRA de cinto. Nem de celular! Estão entendendo?
O menininho atrás de mim deve ter passado a acreditar na história dos pais sobre não poder ir pra Disney porque ficou quietinho.
Comecei a ficar com medo de que o moço que tinha me deixado entrar com o pen drive não tivesse sido rigoroso o suficiente. Ele deveria ter me proibido de seguir adiante com o pen drive. Afinal, um pen drive não é um aparelho eletrônico? Tem saída USB!
Pronto. Ali dentro, as portas que o guardinha zelava com tanto fervor, seriam fechadas para mim. Sabe-se lá quando conseguiria voltar. O melhor seria me livrar daquele pen drive. Pensei em deixá-lo cair discretamente em algum lixo. Mas eles não iriam dar essa moleza. Um lixo é um ótimo lugar para se esconder uma bomba. Não havia nenhum por ali. Então cogitei atirar pra longe, pra rua, através das grades. Mas, eles poderiam achar que eu estava jogando algum tipo de explosivo. Não havia saída. Nem para mim, nem pro pen drive.
Chegou minha vez. A bolsa foi para o raio x. Esperei. A bolsa da mãe do menininho, também. O operador da esteira perguntou se a minha bolsa era minha e passou pela raio x mais uma vez. Meu coração disparou. Passou a da mãe também. Então me disse:
- Pode ir.
Dirigiu-se para a minha parceira de fila:
- A senhora ainda não. Está sozinha?
- Com meu marido e meu filho - ela respondeu, empalidecendo.
Não pude ficar para saber o que aconteceu. Avisei o marido:
- Seguraram sua esposa.
E segui em frente, em busca da nova fila, antes que alguém mudasse de ideia e me chamasse de volta achando que eu era cúmplice da família terrorista.
Por essa passei rápido e quase sem sofrimento. Quem estava sofrendo mesmo era um pequenino de uns três anos que, além de ter de aturar aquela situação estranha e desconfortável, ainda tinha de ouvir dos pais "ah, se você não se comportar, AQUELE moço não vai deixar você ir pra Disney!".
Com uniforme de guardinha, andava de um lado pro outro, encarando um a um, os pobres mortais que aguardávamos para sermos aceitos no Olimpo, discursando:
Daquele momento em diante, não vi mais os três. Não soube o que aconteceu.
Certamente a mãe deveria ter na sua bolsa algo perigoso como uma fralda, uma chupeta ou mamadeira. Bem pior que o meu pen drive.

Aos formandos do nono ano

Tive a honra de representar a Comissao Pv Nonoano na formatura da turma de meu filho Martim. A pedido de Katia Giustino e Jane Maranhão, escrevi e li um texto que deveria ser um recado ao formandos e um agradecimento à escola. (Na foto estou tentando colocar o microfone de volta ao lugar). Aí vai o texto lido:

Filhos, filhas queridos e amados
A gente poderia começar esta conversa falando da importância deste momento: a etapa vencida, as grandes conquistas, o ciclo fundamental que se encerra, o crescimento e o amadurecimento de vocês;
E a gente poderia também falar daquilo que fica pra trás: as brincadeiras, a infância, a inocência, a dependência tão forte dos pais...
Em vez disso, escolhemos falar do que estão levando com vocês ao deixar a Projeto. Daquilo que levarão não apenas para o Ensino Médio, mas para a vida.
Sem dúvida, parte do que levarão é uma base sólida com fundamentos da matemática, princípios das ciências, pilares da geografia, marcos da história...E também levarão as notas, boletins – o chamado “histórico escolar”. Mas... Será isso o mais importante? Será que esta é a bagagem mais significativa que vocês estão levando da Projeto para a Vida?
Duvido.
O cabedal acadêmico, as matérias, o currículo, os boletins escolares e suas notas contam, pois abrem portas, ampliam os horizontes e facilitarão o percurso escolar e profissional que vocês terão pela frente.
Mas este conhecimento todo poderia ser apenas um amontoado de conceitos, ideias, fatos e datas sem sentido. E muitas vezes, é. Porque o que a gente não encontra em qualquer esquina, nem em qualquer escola, é o caldo em que este conhecimento vem embebido. O que a gente não vê em qualquer lugar é como este conhecimento todo – com seu caldo – é absorvido e saboreado pelos alunos.
Na Projeto, este caldo é temperado por valores cuidadosamente escolhidos. Os alunos, com seus professores e a equipe, puderam aprender sentindo o gosto destes valores. Descobriram que o conhecimento não é incolor, inodoro e insípido (como aprendíamos sobre a água antigamente...). O conhecimento é pulsante, multicolorido, plurifacetado, parcial, desafiante mutante... provisório! Esta consciência vocês levarão da Projeto para a vida.
Também, acreditamos, vocês levam na bagagem o entendimento de que este caldo não se prepara e nem se toma sozinho. “Aprender” é um verbo que raramente deveria ser conjugado na primeira pessoa do singular. Em vez de tantos “eu aprendo”, mais “nós aprendemos”. E aprendemos preparando o caldo juntos, na cozinha, conversando, enquanto picamos o alho, descascamos a cebola, provamos o sal, dosamos a pimenta, sob a batuta de um chef experiente, a equipe da escola.
Junto com a receita do caldo estão os parceiros desta animada experiência: os amigos.
Não é à toa que se diz “fazer amigos”. Porque “amizade não se compra”, amigo não tem pra vender no supermercado. A gente tem de fazer. E quando a gente faz amigos, os amigos fazem a gente. Amigos fazem a gente rir. Rir da gente mesmo, das situações e de qualquer bobagem. Amigos fazem a gente se emocionar – de alegria, de raiva, de compaixão.
Amigos nos fazem crescer – porque nos aceitam, mas também porque nos provocam. Amigos nos fazem melhores. E é na escola que podemos fazer os melhores amigos – um presente que levarão – claro, porque tiveram a sorte de estar num lugar que cuidou para que não se estabelecessem desigualdades, discriminações e isolamento. Mas incentivou a cumplicidade, a lealdade, a tolerância.
Nestes anos de Projeto pudemos ver as amizades brotando, crescendo, enraizando fortes. Como é natural, vocês estreitaram os laços com uns mais do que com outros, mas o que pudemos testemunhar nas festas, apresentações, no teatro e em outras ocasiões é que vocês se tornaram um grupo que transformou as diferenças entre vocês numa teia flexível e resistente que une cada um a todos os outros. Um emaranhado colorido de personalidades que se identificam como grupo, mas que se afirmam como únicos.
Nós, pais, só podemos agradecer à escola, por ter – mais do que possibilitado – investido na construção destes vínculos. Tornado o dom da amizade parte de seu projeto.
Além deste dom, das ferramentas e conhecimentos sobre os quais falei, acreditamos que vocês levam consigo mais umas tantas preciosidades
ALEGRIA, CULTURA, ÉTICA, LIBERDADE, AUTONOMIA, PERGUNTAS, COMPROMISSO, COMPANHEIRISMO, RESPEITO, CURIOSIDADE, DIÁLOGO, FELICIDADE, INICIATIVA, GRATIDÃO, SAUDADES, CONVICÇÕES, UNIÃO...
Temos certeza de que vocês vão dar conta do recado - mesmo que às vezes possam achar que não.
Com essa bagagem, ao lado destes amigos, vocês estão prontos para escalar a próxima montanha, e a que vier depois dessa, e a outra e a outra.
E estaremos sempre aqui, atentos. Não só pra estender a mão, oferecer um ombro ou acomodá-los em nossos colos. Estaremos aqui, principalmente, para lembrá-los de que sim, vocês podem, vocês podem ser tudo o que sonharem.