terça-feira, 5 de maio de 2015

Acolhida

ACOLHIDA
Eram os últimos dias de 93 e eu nem trinta anos tinha. Grávida do Theo, meu primeiro filho, decidi passar férias em Jericoacoara, na pousada de um casal de amigos. Solteira, quem me acompanhou na aventura foi a Paula, que viria a ser a dinda do primogênito e que já tinha sido minha parceira numa outra viagem estilo “Thelma e Louise”.
Chegar a Jeri era uma verdadeira odisseia. Além de algumas horas de voo noturno e pinga-pinga até Fortaleza pousaríamos pela manhã e só pegaríamos o ônibus até Jijoca à noite. Viajaríamos 6 horas neste ônibus – que também iria parando ao longo do caminho – com as bagagens nos pés pois nos haviam dito para não deixar no bagageiro sob o risco de serem roubadas. Chegando em Jijoca, enfrentaríamos a última etapa: de jardineira, por uma esburacada estrada de terra e areia. Roteiro adequado para uma gestante de 5 meses.
Havia um problema de timing em nosso cronograma. Da chegada ao aeroporto em Fortaleza até a saída do ônibus para Jijoca teríamos praticamente o dia inteiro. O que fazer com esse tempo todo disponível? Onde ir? O que fazer com as malas?
Uma amiga bem mais velha, sabendo das nossas dificuldades, ofereceu: voces querem que eu fale com o Zé? Ele é de Fortaleza. Vocês poderiam deixar as bagagens na casa dele, passar o dia na praia e ao final da tarde vocês voltam, tomam banho e daí vão pra rodoviária.
O Zé era o amante dela. Que era casado. Quem nos receberia seria a esposa dele, já que ele estava temporariamente morando em Sao Paulo. E, óbvio, ela não sabia que ele tinha uma amante. Achei aquilo meio esquisito. "Como ele vai explicar pra ela quem nós somos? Não vai dar confusão?" "Podem ficar tranquilas," ela garantiu, "ele vai dizer que vocês são sobrinhas de uma colega de trabalho". O problema, inesperado, não foi por isso.
Ficou tudo combinado. Pegamos o endereço e, na data marcada, entre Natal e Reveillon, lá aparecemos, de malas, cuias e barriga de gestante.
Joana, a esposa inocente, nos recebeu muito bem. Tomamos um lanche, trocamos as roupas por biquinis e cangas, os sapatos por chinelos, deixamos as malas num dos quartos e fomos pra praia de chinelo e sacolinha.
Estava quente e ensolarado como se poderia esperar de um dia de verão no nordeste. Passamos o dia na praia, entre águas de cocos e águas do mar. Bronzeadas e cheias de areia voltamos para nossa base de apoio quando já começava a escurecer.
Ao dobrarmos a rua, vimos uma grande movimentação. Muitos carros estacionados, gente parada no portão da casa conversando em pequenos grupos. Nos entreolhamos. Será que havia uma festa na casa e Joana não havia nos comunicado?
Quando nos aproximarmos, entretanto, percebemos que as feições estavam tensas, as vozes sussurrantes, as roupas escuras e formais. E nós de canga, biquini e chinelo.
Constrangidas, pedimos licença e entramos. Dentro da casa, o clima era ainda pior. Pessoas choravam, abraçadas. Para a nossa sorte, encontramos a empregada que havia nos recebido junto com Joana pela manhã e perguntamos o que estava acontecendo. "Vocês não sabem?"
Não, não tínhamos a menor ideia. Mas era grave. "Carlos, o irmão de dona Joana, a esposa e o filho mais velho sofreram um acidente de carro hoje. Todos morreram".
Não soubemos o que dizer. Quando tentamos entrar no quarto onde estavam nossas malas, ao entreabrir a porta vimos uma moça soluçando na cama. Ao lado de nossa bagagem. Recuamos. E agora?
Ficamos paradas na porta do quarto sem saber o que fazer. De canga, biquini e chinelo.
No momento em que percebemos que o choro diminuiu de intensidade, entramos silenciosamente, pegamos nossas coisas e nos retiramos.
Entramos no banheiro, trocamos de roupa sem tomar banho (pois não queríamos interditar o banheiro por muito tempo e nem pedir toalhas pra ninguém). Fomos embora rumo a rodoviária, cheias de sal, areia e sem nos despedir da nossa anfitriã.
Nunca mais a vi, nunca tive oportunidade de me desculpar ou agradecer.
Então, Joana, obrigada pela acolhida. 

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