ACOLHIDA
Eram
os últimos dias de 93 e eu nem trinta anos tinha. Grávida do Theo, meu primeiro
filho, decidi passar férias em Jericoacoara, na pousada de um casal de amigos.
Solteira, quem me acompanhou na aventura foi a Paula, que viria a ser a dinda
do primogênito e que já tinha sido minha parceira numa outra viagem estilo
“Thelma e Louise”.
Chegar
a Jeri era uma verdadeira odisseia. Além de algumas horas de voo noturno e
pinga-pinga até Fortaleza pousaríamos pela manhã e só pegaríamos o ônibus até
Jijoca à noite. Viajaríamos 6 horas neste ônibus – que também iria parando ao
longo do caminho – com as bagagens nos pés pois nos haviam dito para não deixar
no bagageiro sob o risco de serem roubadas. Chegando em Jijoca, enfrentaríamos
a última etapa: de jardineira, por uma esburacada estrada de terra e areia.
Roteiro adequado para uma gestante de 5 meses.
Havia
um problema de timing em nosso cronograma. Da chegada ao aeroporto em Fortaleza
até a saída do ônibus para Jijoca teríamos praticamente o dia inteiro. O que
fazer com esse tempo todo disponível? Onde ir? O que fazer com as malas?
Uma
amiga bem mais velha, sabendo das nossas dificuldades, ofereceu: voces querem
que eu fale com o Zé? Ele é de Fortaleza. Vocês poderiam deixar as bagagens na
casa dele, passar o dia na praia e ao final da tarde vocês voltam, tomam banho
e daí vão pra rodoviária.
O
Zé era o amante dela. Que era casado. Quem nos receberia seria a esposa dele,
já que ele estava temporariamente morando em Sao Paulo. E , óbvio,
ela não sabia que ele tinha uma amante. Achei aquilo meio esquisito. "Como
ele vai explicar pra ela quem nós somos? Não vai dar confusão?"
"Podem ficar tranquilas," ela garantiu, "ele vai dizer que vocês
são sobrinhas de uma colega de trabalho". O problema, inesperado, não foi
por isso.
Ficou
tudo combinado. Pegamos o endereço e, na data marcada, entre Natal e Reveillon,
lá aparecemos, de malas, cuias e barriga de gestante.
Joana,
a esposa inocente, nos recebeu muito bem. Tomamos um lanche, trocamos as roupas
por biquinis e cangas, os sapatos por chinelos, deixamos as malas num dos
quartos e fomos pra praia de chinelo e sacolinha.
Estava
quente e ensolarado como se poderia esperar de um dia de verão no nordeste.
Passamos o dia na praia, entre águas de cocos e águas do mar. Bronzeadas e
cheias de areia voltamos para nossa base de apoio quando já começava a
escurecer.
Ao
dobrarmos a rua, vimos uma grande movimentação. Muitos carros estacionados,
gente parada no portão da casa conversando em pequenos grupos. Nos
entreolhamos. Será que havia uma festa na casa e Joana não havia nos
comunicado?
Quando
nos aproximarmos, entretanto, percebemos que as feições estavam tensas, as
vozes sussurrantes, as roupas escuras e formais. E nós de canga, biquini e
chinelo.
Constrangidas,
pedimos licença e entramos. Dentro da casa, o clima era ainda pior. Pessoas
choravam, abraçadas. Para a nossa sorte, encontramos a empregada que havia nos
recebido junto com Joana pela manhã e perguntamos o que estava acontecendo.
"Vocês não sabem?"
Não, não tínhamos a menor ideia. Mas era grave. "Carlos, o irmão de dona Joana, a esposa e o filho mais velho sofreram um acidente de carro hoje. Todos morreram".
Não, não tínhamos a menor ideia. Mas era grave. "Carlos, o irmão de dona Joana, a esposa e o filho mais velho sofreram um acidente de carro hoje. Todos morreram".
Não
soubemos o que dizer. Quando tentamos entrar no quarto onde estavam nossas
malas, ao entreabrir a porta vimos uma moça soluçando na cama. Ao lado de nossa
bagagem. Recuamos. E agora?
Ficamos
paradas na porta do quarto sem saber o que fazer. De canga, biquini e chinelo.
No
momento em que percebemos que o choro diminuiu de intensidade, entramos
silenciosamente, pegamos nossas coisas e nos retiramos.
Entramos
no banheiro, trocamos de roupa sem tomar banho (pois não queríamos interditar o
banheiro por muito tempo e nem pedir toalhas pra ninguém). Fomos embora rumo a
rodoviária, cheias de sal, areia e sem nos despedir da nossa anfitriã.
Nunca
mais a vi, nunca tive oportunidade de me desculpar ou agradecer.
Então, Joana, obrigada pela acolhida.
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