terça-feira, 5 de maio de 2015

Rápida aventura

Este texto, escrevi sob encomenda há anos para uma publicação que nunca aconteceu. Como vocês perceberão, o narrador/protagonista não sou eu - é uma mistura de meus dois filhos mais velhos - Theo e Martim. Espero que gostem!

— Mãe, quero fazer uma corrida com você. Posso?
Fazia tempo que eu via minha mãe chegar suada e sorridente, com uma medalha pendurada no pescoço. Eram as tais provas. No começo, eu não entendia. Como assim, “prova”? Adulto também faz prova? E ainda por cima chega todo contente?
Logo saquei que eram competições de corrida o que ela chamava de provas. Fiquei impressionado porque sempre, sempre ela chegava com medalha. Ela devia ser super rápida. Ganhava todas! 
 —Todo mundo que termina a corrida, leva uma medalha, explicou.
 “Que coisa mais sem graça”, pensei. “Se todo mundo ganha, ninguém ganha, então não tem vencedores de verdade.”
Pelo menos um domingo por mês ela saía bem cedinho de casa, de shorts, boné e camiseta e um número escrito num papel que ia preso por cima da roupa. Voltava perto da hora do almoço. 
Aquilo começou a me intrigar. Devia ter alguma graça. Foi então que pedi pra ir com ela a uma corrida.

O treinamento
Antes de responder, ela coçou a cabeça e torceu a boca (ela sempre faz isso quando está em dúvida):
— Você quer correr? Tem certeza?
Balancei a cabeça com a maior firmeza.  Já tenho dez anos. Quando tenho certeza, tenho certeza mesmo.
— Bom... Primeiro, vou procurar uma corrida mais curta, de uns cinco ou seis quilômetros. Aí, você vai ter de treinar um pouco.
“Cinco ou seis quilômetros é curta?! Treinar?” pensei, mas não deixei que ela percebesse meu susto. Eu imaginava que as corridas que ela fazia eram aquelas rapidinhas, tipo 100, 200 metros. E treinar? Para quê treinar? Correr é tão fácil! É só pegar e... Sair correndo! Não aguentei e disse:
— Mãe, eu já sei correr. Você acha que eu preciso mesmo treinar?
Ela deu uma risadinha.
— Miguel, você vai precisar acostumar seu corpo a passar um tempo correndo sem parar. Não é igual a dar uma corridinha quando você está jogando bola. O que você acha que eu faço todos os dias cedinho, antes de vocês acordarem?
Era isso que ela chamava de treino. Nunca tinha me ligado.
Começamos o nosso no fim de semana. Viajamos para o interior e lá, como é mais tranquilo, saímos juntos por uma estradinha de terra.
Larguei em disparada. Ela não acelerou. Veio vindo atrás de mim sem se importar em ser deixada pra trás. Eu olhava por cima do ombro e continuava rápido. Aos poucos, minhas pernas começaram a cansar. Não demorou para que ela me alcançasse. Minha respiração estava ofegante, meu coração parecia que ia sair pela boca, estava todo suado e não tinha mais força pra ir a lugar algum.
— Então...já... deu... cinco... qui...lômetros...? perguntei, ainda tentando recuperar o fôlego.
— Negativo. Não deu nem um quilômetro. Você vai ter de aprender a ir mais devagar.
— Um quilômetro? Nem UM quilômetro? Ir mais devagar? Como eu vou ganhar se for mais devagar?
Ela riu.
— Miguel, é isso mesmo. Mais devagar e você vai conseguir correr muito mais tempo.
Depois daquilo fizemos alguns outros treinos. Sempre que me lembrava, corria em volta de casa. Mas não sabia que distância conseguia percorrer, se havia chegado perto dos 5 quilômetros ou quanto tempo tinha levado.
Então minha mãe me comunicou que havia feito minha inscrição na corrida. Seriam cinco quilômetros, na Cidade Universitária de São Paulo, a USP.

O dia da corrida
 Minha mãe me tirou da cama antes de o sol nascer. Eu estava com muito sono. Tinha custado a dormir porque uma dúvida não saía da minha cabeça: “Será que vou conseguir terminar?”
Vesti shorts, camiseta e um tênis de corrida que minha mãe me deu. Então ela tirou de uma sacola com o nome da corrida, o tal do número de papel e um pequeno objeto plástico e explicou:
— Este é o seu número de peito: 2044 e este, seu chip de cronometragem. Vou colocar em você.
Então ela prendeu com alfinetes o número na frente da minha camiseta e colocou o chip no cadarço do meu tênis. Enquanto ela fazia isso, perguntei:
— Para que serve isso, mãe?
— O chip marca o seu tempo. Quando a gente larga, passa por um tapete onde fica um sensor que lê a informação do seu chip e sabe que você é o número 2044 e se chama Miguel Navarro. No final, tem outra esteira que marca sua chegada. Depois sua classificação aparece no site da corrida. O número de peito é pra os organizadores saberem que você está competindo e te darem água, Gatorade e também para os fotógrafos tirarem fotos suas.
— Classificação? Mas você não disse que todo mundo ganha medalha? Para que serve a classificação?
— Serve pra você saber como foi seu tempo em relação aos outros.
— Ah, então tem 1º, 2º e 3º colocados?
— Tem, sim. Tem até do último que chega!
“Puxa...”, pensei “Será que o último não fica triste em ser o último de CINCO MIL pessoas?”
Tomamos um café da manhã especial. Deixamos meu pai e meus irmãos dormindo e lá fomos nós.
Quanto mais perto chegávamos da USP, mais gente eu via vestida igual a mim e à minha mãe. Eram sete horas da manhã de um domingo e, aquelas pessoas, em vez de ficarem sossegadas dormindo nas suas caminhas quentinhas e confortáveis, andavam apressadas, mas sorridentes. Uma multidão uniformizada. Todos de um mesmo time.

A largada
 Minha mãe conhecia um monte de gente. Me apresentava a todos:
- Este é Miguel, meu filho do meio. Ele vai correr comigo!
As pessoas arregalavam os olhos, me cumprimentavam e desejavam “boa sorte”.  E eu só pensava “vou precisar mesmo!”. 
Quanto mais próximos chegávamos da largada, mais gente tinha e mais borboletas pareciam voar dentro do meu estômago.
Num determinado ponto, minha mãe parou e disse:
— Vamos ficar por aqui se não, na hora que largar, vamos ser atropelados. Ah, espera aí que tenho uma coisa muito importante para você.
Então ela pegou uma espécie de cinto e colocou em volta do meu peito, debaixo da camiseta. Depois tirou o relógio de seu pulso e colocou no meu.
— Isso é um monitor cardíaco e GPS. Além de cronometrar seu tempo e marcar sua velocidade, mostra quantas vezes por minuto o seu coração está batendo.  Assim posso ver se você não está exagerando.
Adorei colocar aquele relógio. Ficou um pouco grande, é verdade. Mas era muito legal ver como meu coração batia e, mais ainda, eu iria poder ver a minha velocidade!
— Agora vamos combinar a estratégia para a prova.
— Estratégia? Não é só correr do começo ao fim?
— Sim, a gente vai correr do começo ao fim. Mas vamos tentar fazer o seguinte: no primeiro quilometro a gente vai bem leve, no segundo, a gente acelera um pouquinho, no terceiro a gente acelera um pouco mais e daí mantém até chegar no último. No último, se você estiver bem, aí pode socar a bota!
— Socar a bota?
— Ir o mais rápido que der, como naquele seu primeiro treino.
Tinha uma coisa que estava me incomodando. Eu precisava perguntar.
— Mãe... e seu eu não... e se eu não aguentar chegar até o fim?  Você vai ficar muito decepcionada comigo?
Ela me olhou muito séria:
— Filho, não tem o menor problema se você não conseguir. Mas tenho certeza de que você vai cruzar a linha de chegada. Se você se cansar, a gente anda um pouco.
— Mas pode andar?
— Pode, pode sim. Fica tranqüilo. Não só você vai terminar, como vai chegar antes de um monte de gente.
Fiquei um pouco mais sossegado. Eu não queria andar. Muito menos ser o último!
Ela pegou a minha mão e apertou forte. Olhou-me e disse:
— Boa prova, filho!
— Boa prova, mãe! — respondi.
Soou a largada. Um som de berrante. As pessoas festejaram gritando e batendo palmas e saíram caminhando sem muita pressa.

Quilômetro 1
Ao passarmos pelo pórtico da largada, minha mãe disparou o cronômetro do relógio de pulso. Ali, todos começavam a correr.
Mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos ir muito rápido. Era um mar de gente.
Alguns mais apressados tentavam costurar entre as pessoas, como motoristas nervosos numa estrada cheia. Mas pelo menos pediam licença.
Nós íamos num trotinho que não me cansava.
Depois de sete minutos avistei uma placa onde se lia: 1 km. Já tínhamos traçado o primeiro quilômetro!

Quilômetro 2
Com um “give me five” comemoramos a passagem pela placa. Minha mãe conferiu como estava meu coração e, como tínhamos combinado, aceleramos um pouquinho.
Achei que iria ficar sem fôlego, mas, depois de alguns metros, minha respiração se acostumou com aquele ritmo.
 Nesse momento as borboletas voaram embora do meu estômago. Comecei a olhar em volta e ver que tinha todo o tipo de gente correndo: homens, mulheres, magrelos, gorduchos, altos, baixos, velhos, moços (mas eu era o caçula ali, com certeza), rápidos, lentos.  Alguns conversavam com corredores ao lado, outros iam solitários ouvindo música e, uns poucos, em vez de correr, caminhavam rápido. Mas não tinha um que não estivesse levando a sério aquela corrida.
Olhei para o meu relógio. Estávamos a 9,7 km por hora quando passamos pela placa de 2 km.

Quilômetro 3
Neste quilômetro me animei e comecei a acelerar muito. Minha mãe disse:
— Calma aí! Vamos mais rápido, mas nem tanto. Olha, tenho uma idéia. Está vendo aquele cara ali na frente de boné azul? Vamos ultrapassá-lo! Mas sem correria!
Então miramos no boné azul e lá fomos nós. Conseguimos passar. Minha mãe propôs novamente:
— Agora aquela moça de rabo de cavalo e shorts preto. Vamos?
Depois foi minha vez de sugerir um casal que estava de camiseta igual.
E assim fomos, ganhando de um monte de gente. As pessoas nem percebiam o que a gente estava fazendo, mas, para mim, cada uma dessas ultrapassagens era uma pequena vitória.
No meio deste quilômetro havia um posto de hidratação.
Quando peguei a água de uma das moças que estendia o copinho pros corredores que passavam, ela olhou pra mim e disse para os outros:
— Olha só, gente! Um garoto!
— Aêêê! Parabéns! Vai lá, rapaz, você está muito bem!
E todos bateram palmas enquanto eu tentava manter a corrida e beber água ao mesmo tempo – o que não era muito fácil.
Chegamos à placa de 3km. Comemoramos de novo com um “give me five”. Minha mãe disse:
— Já foi mais da metade. Agora falta pouco!
O relógio marcava 10,1 km por hora.

Quilômetro 4
Nesta parte do percurso os corredores estavam bem mais espalhados e havia espaço para correr. Mas também apareceu uma coisa que não estava no programa: uma subida.
Minha mãe deu as instruções:
— É uma subida pequena, mas é uma subida. Vamos diminuir um pouco o ritmo e vamos dividir em pequenos pedaços.
— Como assim?
— Está vendo aquele poste? Pense que a subida é só até ali.
Quando chegamos ao poste, que era bem pertinho, ela disse:
— Muito bom! Agora, aquela caçamba de lixo!
E lá fomos nós. Cada trechinho tinha uns dez metros e comemorávamos cada chegada.
Quando chegamos ao topo, ela disse:
— Agora pode soltar o freio, que é só descida!
Que delícia! Aceleramos e chegamos até mais um posto de hidratação.  Peguei um copinho, tomei um gole, sem parar de correr e, imitando minha mãe, joguei um pouquinho na cabeça pra refrescar.
Aumentei minha velocidade. O relógio marcava 10,6 quilômetros por hora.
— Ainda falta um quilômetro e meio - disse minha mãe, - você está bem mesmo? Então vamos assim, neste ritmo mais forte.
Começamos a ultrapassar várias pessoas. Muitas exclamavam:
— Olha só esse garoto! Ta mandando bem, hein?  Parabéns!
Comecei a me sentir cada vez melhor, embora já tivesse corrido quase quatro quilômetros. Nem parecia. “Queria que meu pai e meus irmãos vissem isso...” pensei “Eles se orgulhariam de mim!” Na hora em que pensava isso, vi a placa do km 4.

O último quilômetro
Era hora do tudo ou nada.  O olhar da minha mãe me disse: “Vamos nessa!”
E fomos com tudo.
Minhas pernas me levavam.  Meus braços abriam o espaço que estava à nossa frente, meu coração pulsava rápido, minha respiração martelava junto com a batida dos meus pés no chão, minha cabeça estava vazia. Eu não via, mas percebia a presença de minha mãe ali ao lado.
Então avistei o pórtico de chegada.

A chegada
Um pouco antes de cruzarmos a linha de chegada a pista se estreitava, formando uma espécie de funil. Ali, ficava a torcida, aplaudindo todos que chegavam.
Quando entramos neste funil as pessoas aplaudiram muito, assobiaram, gritaram. Tive até a impressão de ouvir meu nome, mas eu não conseguia olhar para os lados — estava totalmente concentrado em chegar ao fim. Minha mãe segurou minha mão para passarmos o pórtico.
Uma alegria imensa tomou conta do meu corpo. E me senti forte como nunca tinha me sentido na vida.
Atravessamos a linha de chegada juntos. Então me soltei de minha mãe e ainda tive forças pra saltar e dar um soco no ar gritando “Yessssss!”
Minha mãe me abraçou forte. Seus olhos estavam molhados.  Voltei a enxergar e ouvir o que estava à nossa volta.
— Mamãe! Miguel! Mamãe! Miguel! Aqui! Aqui!
Meu pai e meus três irmãos estavam lá e faziam a maior gritaria. Corremos até eles e fizemos a maior festa.  Mas eles estavam de um lado da grade, e nós, do outro.
Para sair dali era preciso devolver o chip e...  Pegar a medalha!
Tirei o chip e ganhei a medalha mais linda do mundo.
Ganhamos também uma camiseta de “finisher” (só pra quem termina a prova) e um lanchinho.

O último colocado
Saímos da confusão e encontramos a família. Como o dia estava bonito e meu pai achava que se saíssemos àquela hora pegaríamos muito trânsito, ficamos por ali mesmo, conversando. Eu queria contar tudo para os meus irmãos!
O tempo foi passando, o número de pessoas diminuindo e os corredores iam chegando aos poucos. Até uma hora que parecia não haver mais ninguém. Os organizadores começavam a se movimentar para desmontar as grades, tirar os tapetes... Mas havia uma família ali. Uma mulher mais velha, dois casais de adultos e algumas crianças que brincavam por perto.
A senhora mais idosa parecia tentar enxergar ao longe, as outras, mais moças, roíam as unhas e torciam as mãos. Mas aí ele apareceu. O último colocado. Ele vinha correndo num ritmo arrastado, quase parando. Então ele viu sua família. Seu peito se encheu de ar, seu passo ganhou firmeza, ele acelerou e veio com suas últimas forças. A família gritava “Vai vovô! Vai papai!”. Então pularam a grade e encontraram com seu campeão bem na linha de chegada.


“Ele chegou em último lugar, eu não cheguei em primeiro” pensei, “mas acho que nós dois somos campeões!”. E foi aí que entendi o valor daquelas medalhas.

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