terça-feira, 5 de maio de 2015

Tinha dezesseis

e estava acampada em Trindade, com meu namorado - o Índio, quase seis anos mais velho que eu.
Aos dezesseis, a vida é uma série de grandes novidades. Quase tão fantásticas quanto aquelas – creio eu, mas não me recordo – com as quais nos defrontamos quando, lá pelo primeiro ano de vida, começamos a andar: o ângulo de visão de mundo se altera, achamos que podemos ir aonde bem entendemos sem dar maiores explicações aos nossos pais, corremos riscos, damos cabeçadas, queremos explorar caminhos, encontrar novas paisagens.
Então lá estava eu, passando um mês de férias com meu namorado, sem pai nem mãe, acampada em Trindade, no final da década de 70.
Pés descalços, cabelos despenteados, pele curtida pelo sol e temperada com o óleo de coco Bahia, muito PF de ovo na casa do seu Antônio e da dona Clara, banhos de cachoeira... O que mais uma adolescente poderia querer?
E havia o amor. Índio era tudo que uma teenager poderia sonhar – forte, cabelos longos, cara de mau que se dissolvia em um sorriso maroto, baterista de uma banda de rock, MUITO mais velho que eu (quase seis anos é uma diferença enorme nesta época da vida) e – a cereja do bolo – ele me amava. E eu amava muito tudo isso.
Entretanto, (há sempre um “entretanto”) ele era ciumento.
Naquela tarde, depois de um dia intenso de amor, caminhadas e mar, quando estávamos tomando nosso banho de cachoeira, decidi ficar topless – eu era moderninha e estávamos na década de 70, for god’s sake! Mas eis que um grupo de moços resolve aparecer bem nessa hora. E olhar para os meus peitinhos.
Pronto. Índio não disse uma palavra, mas o tempo fechou. Não aquela tempestade de raios e trovões. Não. O clima ficou, abafado, tenso na iminência de cair o mundo.
Fomos pro boteco da Praia do Meio, tomar uma cerveja ao final da tarde, antes de voltarmos pra praia do Cepilho, onde estávamos instalados. Ele mal falava comigo. Engatou numa conversa com os caiçaras, me deixando sozinha no balcão.
E então pedi uma pinga. Depois outra. Depois mais outra. E, talvez, mais outra. Não lembro. Mas lembro, que lá pelas tantas, sentindo-me abandonada e entorpecida, decidi voltar sozinha para o aconchego da nossa barraca.
Saí sem dizer nada e sem que ele visse. Fui, aos trancos e barrancos, pela estrada esburacada, enquanto a noite caia.
Ao chegar lá, já noite fechada, tive uma brilhante ideia. “Vou fazer um macarrão pra ele”, pensei, “ele vai estar chateado e com fome e vai ficar muito feliz em encontrar uma macarronada pronta”.
Peguei a panela, acendi uma vela depois de gastar meia caixa de fósforos e me dirigi até a bica, ao lado da casa do seu Antônio e da Dona Clara. Enchi a panela de água, voltei para barraca, coloquei em cima do fogareiro mas, quando fui tentar acender o fogo, derrubei a panela, derramando toda a água.
Ainda assim, resolvi tentar mais uma vez. Munida de vela e panela, voltei à bica, enchi de novo e comecei meu caminho de volta. Não era um caminho longo em absoluto. A praia toda deve ter uns cem metros. E o meu percurso deveria ter uns cinquenta. Mas eu já havia andando muito, e havia bebido um tanto. Então, simplesmente desisti. Enterrei a vela ao meu lado, me livrei da panela, deitei na areia e, como se ali fosse a mais confortável das camas, caí no sono.
Algum tempo depois, Índio, que também havia tomado umas e outras e, àquelas alturas já estava arrependido do tratamento que havia me dispensado, chegou ao Cepilho e se deparou comigo apagada no meio da praia.
Aproximou-se, chamou, me sacudiu e diante de minha total falta de reação começou a me dar uns tapas.
Os filhos de seu Antônio e dona Clara, que estavam vendo a cena de longe, puseram-se a gritar: “O Índio ta matando a Claudia! O Índio ta matando a Claudia!”. Neste ponto, o Banzé que era um amigo nosso que também estava acampado ali, ouviu a gritaria e foi ver o que estava acontecendo.
Banzé, então, se depara com a seguinte cena: eu deitada na areia, desacordada, Índio, debruçado na minha barriga chorando e pedindo perdão, ao nosso lado uma vela acesa.
Ele corre até nós é começa a gritar: “Índio! O que você fez com ela?! O que você fez com ela?!” Este, soluçando, responde: “eu tive que fazer! Eu tive que fazer!”
A Bela Adormecida então desperta, com cara de que não sabe onde está nem como chama. “Ahn?!”
Banzé, pra ele: você não deveria ter feito isso com ela, seu idiota!
E pra mim: Mas você merecia apanhar, sua tonta!
O show estava completo. Seu Antônio, dona Clara, seus dez filhos, agregados e outros campistas, assistiam ao espetáculo e, quando Índio me pegou no colo e me aninhei em seus abraços, recebemos uma salva de palmas e assobios.
Não, não fomos felizes para sempre. Mas fomos felizes até final daquele verão.

(Para Silvana Augusto, que não gosta de ler textos longos no Facebook)

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