terça-feira, 5 de maio de 2015

Pai


Não me lembro de meu pai sem barba. Em algumas de minhas primeiras fotos, ainda bebê, há um rapazote imberbe e magriça que dizem ser meu pai. Duvido um pouco. Meu pai nasceu barbado. Não uma barba qualquer, desgrenhada. Uma barba rente, comportada, simétrica. Uma barba confiável. Meu pai é – e sempre foi – a pessoa mais confiável que conheço. Ele nasceu com sistema GPS – muito antes disso existir. Em qualquer lugar do mundo pega o carro e sabe chegar ao hotel, à casa do amigo, àquele pequeno restaurante escondido no meio das montanhas. Ele sabe. Ele sempre soube.
Até hoje, nunca bateu o carro. Nunca foi multado. Nunca molhou a mão de ninguém. Nunca sonegou impostos. Nunca escolheu atalhos, facilidades ou gambiarras. Pagou o preço de suas escolhas.
Não trocou minhas fraldas, nem deu mamadeira. Mas me ensinou a jogar vôlei, brincar de beisebol, andar de bicicleta. Ele nos levou, a mim e minha irmã Silvia, no estacionamento da Faculdade de Saúde Pública da USP, ali na dr. Arnaldo, tirou as rodinhas nos empurrou, uma de cada vez, até que nos sentíssemos seguras e equilibradas – então nos deixava pedalando por conta própria.
A gente velejava. Carregava a vela o mastro o leme e a bulina até a beira da represa e aprendia como encher a vela com o vento em popa e a voltar pra casa, mesmo com o vento contra. E a ouvir o barulhinho que água fazia ao ser singrada por nosso pequeno Starfish. E a se incomodar com os motores poluentes das lanchas.
Entrei na escola já alfabetizada porque ele me ensinou a ler. Pacientemente, com a pata nada.
Tirou fotos fotos e mais fotos toda nossa infância. Tínhamos um quarto escuro no fundo da casa, cheirando a revelador. Lá víamos a transformação do momento em papel. As luzes e sombras aparecendo lentamente dentro daquela bandeja rasa sob a luz amarelada e depois as imagens eram mergulhadas novamente noutra bandeja que as fixava para sempre àquele papel e então eram penduradas naquele mini varal, em versões mais luminosas e outras mais sombrias. Éramos nós naquelas imagens e a entrada naquele quartinho para assistir às revelações era um prêmio. Algum de nós teria mesmo de virar fotógrafa.
E colado à câmara escura, o quartinho. Com as ferramentas e os parafusos e porcas e preguinhos e pregões separados por tamanho tipo finalidade. E ele sempre sabia (sabe até hoje) quando a gente tinha tirado alguma coisa de seu posto.
A gente cresceu e não quis mais que ele tirasse fotos – ou melhor, quis que ele achasse que a gente não queria – mas a gente continuava gostando do olhar dele sobre a gente. Mas ele acreditou e tirou cada vez menos fotos.
Nos transformamos naqueles estranhos seres de 14, 15, 16, 17 e 18 anos. Mesmo assim, ele jogou vôlei com nossos amigos e deixou que usássemos o veleiro e tolerou os namorados cabeludos e maconheiros. Não. Não tolerou apenas. Aceitou. Levou pra Ibiúna e pra João Pessoa.
E eu fui indo pra longe dele. Muito longe. Até o dia em que quebrei. Acabei com o carro na praça 14 Bis, e ele, convalescente de uma cirurgia, saiu de casa no meio de uma fria madrugada de inverno e foi me buscar. Não disse uma palavra.
E no dia seguinte não aguentei ter feito o que fiz, e fiz ainda pior. Quase morri. Idiota. Agora eu sei. Idiota.
Mas não é sobre mim, é sobre ele. Que teve de lidar com a filha que caiu no fundo do poço. Aos dezenove anos, foi dormir no quarto dos pais. Por que era o único lugar seguro.
Um pouco mais tarde, em Londres, ele me visitou. E voltou a tirar fotos. E contou de si. E esteve tão perto, tão perto, que tive saudades antes de ele ir embora, porque sabia que aquele encontro era um reencontro e um novo encontro.
A vida adulta chegou e foi-se impondo. Ele ficou lá, como no dia em que nos ensinou a andar de bicicleta – empurrando, incentivando, ajudando a encontrar o ponto de equilíbrio para nos soltar.
Não paro de aprender com ele. Quando minha carreira foi me levando pra gestão, nosso rol de assuntos em comum se ampliou.
Ele admira minhas façanhas esportivas. Orgulha-se de meus feitos acadêmicos. Incentiva. Vibra. Faz perguntas. Conta pros amigos.
Gosto do olhar dele – com lentes ou sem lentes – sobre mim.
Admiro a incrível disposição que ele tem de ajudar minhas irmãs organizar suas vidas. Sem invadir, sem palpitar – colocando cada parafuso no lugar mais funcional, a chave de fenda no lugar mais acessível.
E a barba foi ficando cada vez mais branca. Totalmente branca. Continua rente, comportada, simétrica. Mas agora é mais aconchegante.

Obrigada, pai, por me deixar ser filha.

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