terça-feira, 5 de maio de 2015

Sobre caprichos e letras ou a síndrome do borrão

Até hoje é assim: não consigo traçar uma linha reta nem mesmo com uma régua. Por mais que calcule, fique firme e concentrada, ela se inclina. Se a reta tiver de ser maior que a régua, tanto pior: nunca acerto o ponto de junção. Pode parecer piada, mas mesmo com o computador, algumas vezes as tabelas teimam em sair tortas ou desiguais — não sei que besteira consigo fazer, mas a linha de uma coluna se desencontra da linha de outra coluna, o tamanho das células fica diferente e quanto mais tento consertar, pior fica.
Não é de hoje esta a sensação: o que quer que eu faça, é impossível que resulte imaculado.
Quando estava no primário, as minhas lições nunca ficavam limpas.  Tenho a impressão de que os professores não nos ensinavam como usar a borracha.  Os meus escritos ficavam mal apagados, com uma escrita mais forte por cima dos borrões.  Muitas vezes também acontecia de eu passar a borracha com tanta força que acabava por rasgar o papel.  Tinha mãos de moleca, raramente não estavam com um pouco de terra, pó de giz, restos de tinta ou mesmo com uma pitada de manteiga ou nescau, restos do lanche.  Claro que as professoras nos mandavam lavar as mãos depois do recreio mas, por algum mistério inexplicável, as minhas voltavam a se sujar magicamente. Então, com a melhor das intenções, para conseguir cravar o lápis – ainda preso por mãos muito inexperientes no ato da escrita – segurava a folha deixando assim minhas impressões digitais. Ou seja, as lições eram um amontoado de borrões multicoloridos, rasgos e uma escrita em cinquenta tons de cinza. 
Sempre gostei de cadernos novos, com aquelas folhas branquinhas, as páginas apertadinhas umas contra as outras.  Adorava estreá-los e escrever principalmente nas folhas do lado direito, que eram mais firmes. Mas minha alegria durava pouco. Primeiro – eu não conseguia encapar direito.  Cortava um papel ou um plástico pequeno ou grande demais.  Colocava o durex torto e, quando percebia que não era só durex mas o papel e a dobra também que estavam desalinhados, então eu tinha de arrancar o durex e lá se ia uma lasca do meu caderno.  Em seguida, soltava o miolo da capa, as pontas das folhas se dobravam por vontade própria e, óbvio que ele parecia ter um impulso suicida, se jogando da minha mão ou caindo da minha mala quando eu estivesse passando perto de algum lugar sujo e, de preferência, molhado.  O pior é que eu teria de conviver com aquele maltrapilho até o fim do ano letivo.
Odiava aquelas meninas que entregavam as lições impecáveis – e eram sempre meninas.  Como elas conseguiam?  Pareciam não ter de fazer esforço algum para deixarem seus trabalhos intactos. Eram donas de borrachas branquinhas – que nunca escureciam, e de lápis cujas pontas estavam sempre afiadas. Seus cadernos estavam sempre novos – encapados com papéis cor de rosa ou floridos, não sujavam nem rasgavam. Elas também eram capazes de tomar o toddy que traziam naquelas garrafinhas de plástico das lancheiras sem derramar nem uma gota.  E suas garrafinhas nunca vazavam dentro da lancheira, melecando tudo, como acontecia com a minha. Ah, que inveja.
Um dia consegui fazer uma lição de casa (e estas eram as piores, pois sempre amassavam no caminho de ida ou volta da escola) sem nenhuma mancha e sem amassar.  Chegando à minha classe, coloquei, orgulhosa, a lição sobre a mesa à espera de que a professora viesse recolhê-la.  Um golpe de vento lançou minha folha ao chão e, antes que eu tivesse tempo de resgatá-la, um colega desavisado pisou bem em cima dela, deixando a marca de sua sola.
No ginásio, isso passou a me incomodar mais.  Começaram os trabalhos em grupo, os seminários e a nota para “apresentação” (leia-se “capricho”).  Nunca tirei um 10, um “O” (de “ótimo”) ou um “A” neste quesito.  Lembro-me uma vez, na quinta série, que tínhamos de fazer, em duplas, um cartaz com uma linha do tempo.  Além de eu estar totalmente confusa com alguns dos conceitos envolvidos naquela atividade – não entrava na minha cabeça a os tais anos a.C., que iam em contagem regressiva até o ano zero – minha dupla, como era muito mais inteligente do que eu, decidiu que ela faria a pesquisa e o rascunho e eu apenas passaria para a cartolina.  Fiz o meu melhor, mas ela não gostou.  Sem nenhuma concessão, espírito de equipe ou solidariedade, jogou o que eu havia feito fora, fez um novo e, no canto da folha escreveu:
Pesquisa – Liliane K.
Linha do tempo – Liliane K.
Texto – Liliane K.
Resto – Claudia Aratangy.
No colegial , o problema continuou. Mas, no Equipe lugar onde estudei na década de 70, tanto forma quanto o conteúdo eram valorizados, entretanto, havia maneiras alternativas de apresentar aquilo que sabíamos – audiovisuais e exposições orais, por exemplo, estavam no mesmo patamar que os trabalhos escritos.  Uma vez, eu e minhas queridas colegas fizemos um belíssimo trabalho – uma entrevista com um dramaturgo e autor de telenovelas.  Nem me lembro sobre o que conversamos com ele, mas sei que nos saímos muito bem.  Como deixávamos tudo para última hora, não houve tempo de passar a entrevista a limpo.  Resultado: conteúdo A+, apresentação E. A diferença é que eu não estava muito preocupada.
E quem se lembra das transparências? Sim, foram muito úteis para os felizardos dotados das coordenações mão-boca e viso-motoras.  Sim, as transparências ajudaram muito quem era capaz de falar sem perder o fio da meada ao mesmo tempo em que não colocava o acetato de ponta-cabeça, conseguia cobrir a parte debaixo e não a de cima e direcionar a luz de modo que a exposição na tela ficasse numa altura e foco que todos os participantes conseguiam enxergar.  Eu sou daquelas que, além de não conseguir nada disso, ainda deixava a transparência escorregar, não achava a próxima folha e esquecia o ponto onde havia parado antes de ir pegar aquela que foi se esconder embaixo da mesa.
O computador, com seus programas maravilhosos, é um inegável aliado de quem, como eu, sofre da síndrome do borrão.  Mas mesmo assim, posso levar horas para, numa apresentação em PowerPoint, por exemplo, que os bullets não fiquem mudando de formato ou para que a imagem não fique empurrando o texto pro lugar errado. 
Minha letra era – e ainda é –, um capítulo à parte.  Não houve exercício de prontidão, psicomotricidade ou cadernos de caligrafia que tenham dado jeito nela – “ondinha vai, ondinha vem” (lembram?) e a minha letra foi por água abaixo. Uns culpavam o modo como seguro o lápis – com a mão virada para dentro, como canhota, sendo destra; outros, a escola “moderna”, que não infernizou minha escrita o suficiente. Fato é, que todos os esforços no sentido de tornar minha letra decente foram inúteis.  Tive e tenho uma letra ridícula.  Diferente do meu irmão, que também tinha uma letra torta, amontoada e irregular e que hoje tem uma respeitável letra de engenheiro (mesmo que seja economista), parecida com a do meu pai – firme, decidida, angulosa e, principalmente, legível – a minha não evoluiu.  Nasceu torta e, ao que tudo indica, torta morrerá. Minha letra tem parentesco com a letra de minha irmã Silvia e com a da minha mãe, numa versão piorada. É pequena, infantil, tímida, às vezes rasteja pela linha, quase sumindo, cheia de interrupções onde não deveria e de junções, onde não poderia. 
 Definitivamente, não tenho a chamada “letra de professora”.  Quando dava aula aos pequenos, escrevia sempre em letra de forma que, mesmo assim, estava sempre deformada, de modo que os alunos, recém-alfabetizados, não conseguiam entender se eu havia escrito “gato” ou “cato”.  Hoje, quando vou dar cursos ou palestras, evito ao máximo ter de usar a lousa ou o “flipchart”.  Além da minha total incapacidade de prever o tamanho necessário da letra para que caiba tudo o que tenho de escrever – o resultado é um amontoado de letras miúdas e espremidas no canto inferior do quadro.  Isso sem falar na minha impossibilidade de escrever em linha reta.  Ao sabor não sei de que ventos, minha escrita sobe e desce, navegando pela lousa. 
E a assinatura? Nunca consegui criar uma rubrica. Morro de inveja do meu marido, que faz aqueles salamaleques todos que resultam num símbolo ilegível, porém firme e regular.  É a sua marca, seu carimbo. O meu, “Claudia R. Aratangy“, por extenso, com o “Rosenberg” abreviado, é patético. Em algumas situações, tenho vergonha de assinar. No ambiente responsável, comprometedor e sisudo das páginas de um contrato, como colocar uma assinatura tão pueril? Assino sempre com o receio de que os contratantes resolvam voltar atrás depois de ver minha assinatura.  “Com uma letra dessas, como poderá ser uma profissional competente?” perguntariam eles. Até hoje isso, felizmente, não aconteceu, mas, confesso, que aguardo ansiosamente a popularização da assinatura eletrônica.


  

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